Já que estou de mudança para outro país resolvi levar comigo relíquias filmadas em VHS, de quando eu tinha 4, 7, 10 anos. São viagens, aniversários, Sedarim de Pessach, essas coisas de família. Valioso. Muitos que aparecem nos vídeos já não estão mais com a família - que suas memórias sejam abençoadas.
Não tenho mais nada que rode VHS, então decidi transformá-los em DVD.
Googlei “transformar VHS em DVD – Rio de Janeiro”, anotei uns 4-5 e-mails diferentes e pedi uma cotação. Escolhi o melhor custo x benefício.
Após alguns dias, me responde o transformador de VHS, por e-mail:
- Seus DVDs estão prontos, totalizaram R$210, acho que consigo lhe entregar no sábado.
Decidi ligar para perguntar se estava tudo certo com as imagens, combinar entrega e pagamento. Falamos sobre os vídeos e eu lhe disse então que pagaria 50% do valor naquele mesmo dia (antes mesmo da entrega) e mais 50% após conferir que todos os DVDs estavam gravados corretamente. Levei um susto ao verificar a reação do rapaz ao telefone:
- Como assim?? Não está confiando em mim??? Se quiser me pague tudo após você conferir os DVDs, já que não está confiando. Não quero que me pague nada agora. Trabalho há 10 anos neste mercado... BLÁ BLÁ BLÁ
Depois percebi que já escutei coisas parecidas em outras situações. Normalmente de pessoas mais velhas...
Mas por que isto acontece? Decidi então redigir a lógica racional deste negócio. A composição é muito simples. Nem perderei tempo acessando o Código do Consumidor para verificar se estou certo, pois não é uma questão de legislação, é uma questão de lógica.
Temos duas personalidades na operação, o consumidor e o prestador de serviço.
O consumidor está exposto ao risco do serviço não ser corretamente prestado (risco do consumidor). Em contrapartida, o prestador de serviço está exposto ao risco de inadimplência por parte do cliente (risco do fornecedor).
Até aqui tudo certo? Ok, vamos continuar.
O pagamento em pecúnia por parte do consumidor é a remuneração do trabalho realizado pelo prestador de serviço (ativo do fornecedor). Por outro lado, a serviço/produto recebido pelo cliente é a remuneração do dinheiro investido para este fim (ativo do consumidor).
Como está o Balanço no início da operação? Conforme abaixo:
Balanço do Consumidor | ||
Ativo | Passivo | |
R$ 210,00 | R$ 0,00 | |
(caixa) | PL | |
| R$ 210,00 | |
Balanço do Fornecedor | ||
Ativo | Passivo | |
R$ 210,00 | R$ 0,00 | |
(conhecimento + equipamento | PL | |
para transformar VHS em DVD) | R$ 210,00 | |
No momento da contratação do serviço, os Balanços mudarão.
O consumidor fica com uma dívida de R$210,00 contra o Fornecedor (passivo) e o Fornecedor assume o compromisso (passivo) de entregar o serviço, vejam:
Balanço do Consumidor | ||
Ativo | Passivo | |
R$ 210,00 | -R$ 210,00 | |
(caixa) | (contas a pagar) | |
| PL | |
| R$ 0,00 | |
Balanço do Fornecedor | ||
Ativo | Passivo | |
R$ 210,00 | -R$ 210,00 | |
(contas a receber) | (promessa de entrega DVD) | |
| PL | |
| R$ 0,00 | |
Agora, temos duas opções...
O cliente pode pagar antes de receber o serviço, ou pode pagar apenas após receber o serviço. Imagine um primeiro cenário, em que o cliente opta por pagar pelo serviço de forma adiantada. O cliente continua com o PL zerado, pois haverá uma saída de caixa e o passivo não mais existirá. Por outro lado, veja o que acontece com o Fornecedor:
Balanço do Consumidor | ||
Ativo | Passivo | |
R$ 0,00 | R$ 0,00 | |
| | |
| PL | |
| R$ 0,00 | |
Balanço do Fornecedor | ||
Ativo | Passivo | |
R$ 210,00 | -R$ 210,00 | |
(caixa) | (promessa de entrega DVD) | |
| PL | |
| R$ 0,00 | |
Perceberam a diferença? Não. Os PLs dos dois ainda estão zerados, então qual a diferença?
Dificultei propositalmente.
Parece não haver modificação no novo Balanço do fornecedor. Provavelmente assim também pensou nosso amigo transformador de VHS para DVD...
Aí que mora o perigo!
Repare que no Balanço anterior, o ativo do fornecedor não era formado por “caixa”. Era apenas um ativo “a receber”. No entanto, com o pagamento adiantado do serviço por parte do cliente, o novo Balanço do fornecedor, apesar de não ocorrer mudança no PL final do ponto de vista “contábil”, é melhor do que o Balanço anterior, pois é muito melhor ter caixa do que ter uma “promessa de caixa”.
Este erro é comumente visto no mercado financeiro, muitas vezes até por profissionais da área.
Os analistas de empresas costumam olhar muito para o Balanço das mesmas. É claro, o Balanço deve ser considerado. Mas não se pode olvidar da análise do fluxo de caixa. Ter um patrimônio líquido (PL) alto não significa solvência. Não ter solvência significa destruição de valor. Uma empresa pode ter um PL de 10 bilhões, sendo 15 bilhões em ativos e 5 bilhões em passivos. Se o ativo de curto prazo for de apenas 200 milhões, e o passivo de curto prazo for de 4,5 bilhões, esta empresa está fadada à falência. Como ela pagará suas dívidas de curto prazo?
Nosso amigo transformador de DVDs infelizmente ignorou este pequeno detalhe. Quem ignora, é ignorante. Não fique ofendido. Eu também sou ignorante, todos nós somos, pois não temos conhecimento infinito e acabamos por ignorar algumas coisas.
O rapaz imaginou estar com a razão e ainda ficou ofendido pela minha falta de confiança em seu trabalho. Meu querido, e o seu Balanço!? Você fica com um Balanço muito melhor do que o meu e ponto final!? Acaba assim? É assim que funciona? Confiança é sinônimo de burrice?
Há 100/200 anos, as pessoas se conheciam mais. Havia o padeiro, o leiteiro. Hoje moro numa cidade com milhões de pessoas e nem conheço a pessoa que mora parede com parede para o meu apartamento.
Por que devo confiar em alguém que não conheço? Quantos pilantras e finórios tive que me deparar em 25 anos de vida para aprender que não é aconselhável dar um voto de confiança grátis para desconhecidos?
Podem me chamar de insensível, não me importo. Muitas vezes ser racional é ser insensível, e ser sensível é ser irracional.
Crédito vem do latim “creditu”, que significa confiança. Dou crédito a quem conheço e confio. Crédito se conquista, assim como a confiança. Você aplicaria R$10.000 num CDB do Banco Piraruíba, aquele desconhecido aí da esquina? Por que não? Nossa, que insensibilidade!!! Por que não aplica na confiança? Com o seu dinheiro você se preocupa, e não posso me preocupar com o meu e já sou chamado de insensível e desconfiado!?
Calma leitor! Não estou falando de você. Estou apenas desabafando, conforme epígrafe.
Voltando agora aos números, veja como seria “lindo” se o mais justo fosse posto em prática. Mesmo sem ainda ter recebido os DVDs, considerando que o fornecedor já realizou um trabalho para confeccioná-los - independente do mesmo ser aprovado ou não -, paga-se um sinal de R$105 (50%):
Balanço do Consumidor | |
Ativo | Passivo |
R$ 105,00 | -R$ 105,00 |
(caixa) | (contas a pagar) |
| PL |
| R$ 0,00 |
Balanço do Fornecedor | |
Ativo | Passivo |
R$ 105,00 | -R$ 210,00 |
(caixa) | (promessa de entrega DVD) |
R$ 105,00 | PL |
(contas a receber) | R$ 0,00 |
O Balanço do Fornecedor está melhor do que o anterior. No entanto, houve uma contrapartida muito importante: trabalho.
Se o sinal deveria ser de 10%, ou 50%, é outra história. Não vamos entrar agora neste mérito.
Muitos podem argumentar que só devemos pagar pelo serviço após a entrega. Discordo, mesmo que isso acabe me desfavorecendo na qualidade de cliente.
Quando você contrata um serviço, nada mais justo do que adiantar um pró-labore referente ao tempo do prestador de serviço que está sendo gasto com a sua demanda. Veja bem, por que o cliente precisa sempre sair ganhando? Até concordo que o prestador de serviço pode, para conquistar a clientela, aceitar receber pagamentos apenas contra entrega. No entanto, isto não significa que esta é a forma mais correta do ponto de vista econômico.
Acredito que o dispêndio de “joules” por parte do prestador de serviço merece uma remuneração, mas é claro, apenas um pró-labore e não o valor total do serviço, que seria complementado por um tipo de “sucess fee” implícito.
Agora, pergunto eu: Por que esta contrapartida financeira para o fornecedor deverá ser total, ou seja, uma criação de caixa equivalente a R$210, se a contrapartida do cliente ainda não é total (entrega + aprovação do serviço)? Conseguem enxergar o desequilíbrio econômico? Para mim o desequilíbrio é claro, chega a ser ensurdecedor de tão claro.
Mais um argumento para o cliente: se o pagamento é feito em sua totalidade e de forma adiantada, qual a garantia do cliente de que o fornecedor estará motivado a reparar algum problema na ocorrência de qualquer equívoco? Se o fornecedor já atingiu o “auge de seu Balanço”, por que se esforçará para agradar seu cliente? Alguns vendedores vestem a camisa “Cliente em 1º lugar”, mas muitos não pensam desta forma. Tenho certeza que você já se deparou com algum, certo? Então esta motivação não é garantida, mas a motivação financeira sempre funciona (quem gosta de finanças comportamentais vai me contradizer, argumentar que a compensação financeira nem sempre funciona, mas vamos adotar a regra geral, deixemos behavioral finance para outro artigo).
Conclusão da história: ao telefone, “convenci” o transformador de VHS a fazer do meu jeito, ou seja, pagaria 50% de sinal referente ao seu trabalho e mais 50% após conferencia do material. Digo “convenci” entre aspas porque o convenci a fazer do meu jeito, mas isso não significa que o convenci de meus preceitos econômicos.
Quando desliguei o telefone, pensei: “Sabe o que? Não vou criar caso por causa de R$210. Vou pagar logo este troço adiantado e ponto final. Meu nome e meu orgulho valem muito mais do que isso...”. Fiz um DOC NO VALOR TOTAL e mandei o comprovante por e-mail.
Vejam o que o sujeito me respondeu, para minha tremenda satisfação, algum tempo depois (transcrevo exatamente como me foi enviado):
Já recebi o pagamento obrigado!
Fui conferir os DVDs já gravados e, houve uma interferência na gravação que só agora percebi, vou tentar regravar tudo para entregar amanha.
Caso não consiga entrego até segunda feira ou terça de no máximo!
Algumas fitas estão com problemas de tracking, umas que estavam sem caixa numero 3 e a de numero 9 e 18 (caixas arranhadas) que numerei nas fitas !
Caso queira posso estornar o depósito e você refaz quando lhe entregar as fitas na segunda ou terça , caso não consiga até amanhã!
Att
Acho que o “transformador de VHS” transformou também seu modo de pensar.
Pra mim, já valeu o dia.
Obs.: Querido transformador de VHS, se você estiver lendo este artigo, pois coloco o endereço deste blog na minha assinatura de e-mail, não fique zangado. Por favor, me entregue as fitas e DVDs em bom estado! Sei que você é uma pessoa do bem, simplesmente teve dificuldades de entender meu raciocínio. Não fiquei nervoso com o senhor, apenas com a situação. Espero que os DVDs estejam “ok”, e você não terá que estornar nenhum pagamento. Da próxima vez, para que não corra o risco de passar pelo constrangimento de ter que estornar um pagamento feito pelo cliente, siga a minha dica...
Muito obrigado pelo serviço!
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